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A NOSSA CULTURA FÍSICA

A pergunta: « quem é o homem ?» que todos nós nos fazemos, de uma forma ou de outra segundo a

idade e as circunstâncias da vida, subsiste permanentemente. Ela é vital, interfere connosco, é prelúdio à

procura de sentido; a ausência de resposta mobiliza-nos, faz-nos caminhar, dinamiza-nos. A nossa vida é

uma resposta às nossas escolhas e às nossas tomadas de posição. O nosso corpo é uma resposta.

Como a definição de homem não está resolvida de forma definitiva, cada um de nós é um elemento da

resposta e esta é a nossa razão de ser ; a nossa vocação de ser humano é a de responder a esta

questão com o nosso corpo e através dele.

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SERÁ QUE A NOSSA « CULTURA FÍSICA » É ANALFABETA?

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A expressão « cultura física » designa o conjunto das actividades do corpo humano em todas as

situações quotidianas ou esporádicas: trabalho, viagens, desporto, expressão corporal, dança,

sexualidade,…

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OU ESTARÁ ELA NUM IMPASSE ? :

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« Charlotte, já te disse que não deves subir as escadas com a ponta dos pés. »

« Mas, Pai, disseram-me que assim teria bons músculos »

Sabemos que bloqueamos a respiração sempre que fazemos um esforço ou quando nos concentramos,

como por exemplo quando nos vestimos !

Pela manhã, quando acordamos, não nos espreguiçamos como fazem os gatos e os outros felinos, e

provocamos uma contracção de todos os nossos músculos extensores.Trata-se portanto de uma

extensão. Este contrasenso não incomoda ninguém.

Quando fiz a minha formação como fisioterapeuta, tinha uma fraca «cultura física» e os meus estudos não

preencheram esta lacuna. Fiz as minhas pesquisas até encontrar Françoise Mézières, fisioterapeuta e

autora de um método com o mesmo nome. Ela conquistou-me pelo seu interesse no trabalho e pela sua

radicalidade. A sua persistência levou-a a descobrir novas leis de funcionamento do corpo, leis essas que

revolucionaram a fisioterapia e a « cultura física » : « nós não sofremos (dores nas costas, dores

musculares, dores nas articulações…) por termos músculos débeis, não! Sofremos porque a nossa

musculatura posterior é demasiado forte e demasiado curta, o que origina complicações, dores e por

vezes doenças.

Existe uma causa histórica para este erro de análise : por volta do ano 1900, a  «cultura física» resumia-

se a um desprezo por tudo o que dizia respeito ao corpo, com excepção da equitação, da caça, das

danças artísticas e folclóricas.

Por volta de 1920, Pierre de Coubertin, humanista esclarecido, elege o desporto como meio para

construir a paz entre os povos e atenuar os nacionalismos, concebendo os Jogos Olímpicos modernos. A

actividade física reencontra os seus trunfos mas a nossa cultura física, infelizmente, adota os mesmos

valores que a nossa cultura envolvente : o desenvolvimento industrial, o expansionismo . É

imprescindível muscular-se para ganhar força, é preciso ser o mais forte para ser o melhor, para ganhar,

para ser campeão.

A nossa cultura física orienta-se para uma performance, para a selecção de uma élite em detrimento de

uma prática popular, do deleite, da convivência do desenvolvimento de cada um segundo os seus gostos,

a sua idade, as suas capacidades …

No seu entusiasmo pelas performances, a nossa « cultura física » prefere a potência muscular à

flexibilidade, à harmonia muscular. A harmonia muscular é uma relação de força harmoniosa entre as

cadeias musculares que provocam a extensão ou arqueamento e as que são responsáveis pela flexão.

Esta harmonia muscular é a chave de leitura que o Método Mézières proporciona, permitindo analisar

todas as actividades físicas, as posturas no trabalho, dos músicos, dos bailarinos, dos desportistas …

 

CULTURA FÍSICA E SENSAÇÕES

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Nós aprendemos que temos cinco sentidos. O termo proprioceptividade, utilizado em medicina, não tem

correspondência na linguagem corrente, a não ser em expressões como habitar no seu corpo, viver o seu

corpo, ser o seu corpo, mas não existe uma palavra específica para o dizer.

A criança desenvolve-se a partir das suas sensações, olfativas, auditivas, desde o início da sua vida e

mesmo antes do nascimento uma vez que ela se apercebe das vozes, da música, dos ruídos que a

rodeia. Como um computador vazio, ela recolhe as sensações, conjuga-as, apreende o mundo e

desenvolve-se a partir das suas sensações. No jardim de infância existe o espaço para a educação e o

desenvolvimento das sensações, mas a partir do primeiro ano da escola primária inicia-se a

conceptualização e nunca mais se ouve falar de sensações senão mais tarde, nas aulas de filosofia, para

explicar todos os seus aspectos falaciosos e afirmar que só se pode chegar à verdade através da

intelectualização, a famosa racionalidade. As sensações são relegadas para o domínio privado : estudar

música, artes plásticas, dança, gastronomia, …no entanto são elas que permitem a apreensão do real.

Durante os meus estudos, nunca ouvi falar de sensações. A minha descoberta deu-se quando tinha trinta

anos, durante um curso de dança contemporânia, quando experimentei a « sensação de ser » como uma

descoberta de mim mesmo, uma resposta àquela pergunta urgente na adolescência mas que continua

 

pela vida : quem sou eu? Não era uma resposta metafísica : eu vivia no meu corpo, morava nele, visitava-

o, sentia-o. Após uma sessão, no meu consultório, direccionada para as sensações, uma doente

declarou:  « sinto-me reconciliada comigo mesma». Ela tinha-se encontrado consigo mesma, pois estava

de novo nas suas sensações.

Um dia ouvi um professor de dança dizer a uma aluna: « o que acabaste de fazer é bonito, este gesto

é belo». Questionei-me: o que é o belo? Um gesto belo, é estar totalmente presente nas suas sensações.

No meu trabalho encontro «o belo» na adaptação do corpo a tudo aquilo que ele é levado a viver como

esforço, fuga, para superar a dor, quer seja no trabalho quer seja no desporto. O que é belo é o processo

vital subjacente, é o desejo de vida que ele expressa. E isso vê-se, sente-se, o corpo não mente.

 

QUAIS AS SOLUÇÕES ?

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Respiração e atitudes quotidianas

Quando estamos prestes a fazer um esforço, como por exemplo levantar um objecto pesado ou mesmo

quando nos concentramos, o nosso primeiro reflexo é o de bloquear a respiração; a musculatura das

costas contrai-se ao máximo, excessivamente! Este reflexo é um reflexo de defesa, para nos protegermos

em caso de queda ou de uma dor. Estamos pois perante um registo excepcional de proteção. Se

generalizarmos este bloqueio, estamos permanentemente em tensão. É o que chamamos de stress. Para

lutar contra este mau hábito, basta expirar voluntariamente em cada esforço, fazendo com que o gesto de

expirar, reparta o esforço de modo mais harmonioso, quer seja ao vestirmo-nos, ou ao levantarmo-nos de

uma cadeira. Resumidamente, todos estes momentos do dia em que bloqueamos a respiração, fazêmo-lo

sem uma razão válida.

Subir escadas, correr, sentar-se são gestos que, no dia a dia, tanto podem contribuir para a nossa

harmonia muscular como podem aumentar o desequilíbrio entre a musculatura posterior e a musculatura

anterior.

Nós podemos, como eu expliquei à Charlotte, subir as escadas apoiando o pé inteiro e não com a ponta

dos pés nos degraus. Assim também a posição de sentado a uma secretária é muito mais repousante se

apoiarmos os lombares no encosto de uma cadeira em vez de estarmos com as costas retas, sem as

apoiar.

Terapias :

Sentir o seu corpo acalma o excesso de tensão muscular.Esta é a base de todos os métodos de

descontracção, relaxamento, tais como o treino autógeneo, o método do Doutor Vittoz, a Eutonia de

Gerda Alessander, o método do Doutor Erenfried. Métodos que se oposeram à « cultura física »

envolvente (cultura do reforço muscular) e que descobriram e ajudam a descobrir a importância das

sensações.

As pessoas têm problemas psíquicos quando não sentem o seu corpo. O método Vittoz convida-as a dar

atenção às suas sensações: o que vêem, o que ouvem, o que sentem…encontrando assim um equilíbrio

entre o físico e o psíquico.

A Eutonia consiste em estar totalmente presente, em termos de sensações, no gesto ou movimento que

estamos a realizar. Este trabalho limpa as marcas dos traumatismos, tal como numa somato-análise.

A nossa história traumática está inscrita no grande livro do nosso corpo.

Como o método Mézières, estas técnicas realçam o facto que o corpo memoriza todos os traumatismos e

têm como finalidade eliminar as consequências. A novidade destas terapias está na constatação da

reversibilidade da maior parte dos traumatismos.

Conclusão :

O analfabetismo da nossa « cultura física » deve-se, na nossa sociedade, a um flagrante desequilíbrio,

entre o físico e o mental. Nós intelectualizamos tudo e a nossa corporeidade não encontra o seu lugar:

faltam as palavras, como falta uma educação das sensações.

Este grito de alarme é de uma importância tal que o corpo tem uma palavra a dizer na procura de sentidos

que vive a nossa cultura: o corpo, assim como a alma, vive o momento presente, ponto comum entre a

eternidade e o tempo que o homem vive...

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Jean-Marie DROUARD

e-mail : drouard.jeanmarie@free.fr

site : therapie-mezieres.eu

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